por Kiko Rieser, diretor e adaptador

Esta adaptação juvenil do romance “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, privilegia o jogo como componente principal da encenação: quatro atores interpretando dezesseis personagens num palco praticamente vazio, com todas as trocas de roupas feitas em cena e trilha sonora executada ao vivo pelos atores. 

A narração do protagonista Bentinho se mistura aos diálogos e às ações, contando como ele e Capitu, amigos de infância, descobriram estar apaixonados um pelo outro e consolidaram este amor, passando pelo impedimento da família dele, que o queria padre, e pelos ciúmes doentios que ele sentia por ela. A suspeita de uma traição jamais confirmada nos leva a tomar um partido da história, acreditando na culpa ou na inocência de Capitu ou, ainda, nos abstendo do julgamento. Seja como for, a dúvida jamais será abolida.

“Dom Casmurro”, como todos os romances machadianos, apresenta diversos temas e subtemas, levantados a cada capítulo. Elegi como pedra fundamental da minha leitura do romance e desta adaptação a força da própria literatura, representada pelo relato de Bentinho, seja no livro ou no palco. Fundindo-se a narrativa de Machado com a narração de Bentinho, a história tem o poder de conduzir o leitor/espectador por diversos pontos de vista, induzindo a algumas conclusões tiradas por Bentinho, ao mesmo tempo em que, pela construção argumentativa, dá pistas que nos lançam na contramão da tese defendida pelo narrador. Seu ciúme doentio, sua memória falha, seu poder de imaginação, as semelhanças casuais entre pessoas sem qualquer tipo de parentesco e mesmo sua formação em direito (que lhe proporciona, imagina-se, uma capacidade incomum de defesa do caso) são pontos levantados que põem em cheque a acusação de traição que ele lança contra Capitu. E é justamente o ponto de vista questionável desse relato que acaba com o amor de uma vida inteira. Bentinho tenta convencer o leitor/espectador através de sua manipulação narrativa dos fatos, da mesma forma que convenceu a si próprio de algo nunca comprovado.

Sua narração é uma prova de amor à literatura e, posto no palco, ele se transforma em um contador de histórias, remetendo às origens da literatura, em sua tradição oral, quando era transmitida pelos rapsodos gregos. A sedução pela palavra é o norte do nosso narrador, a fé no poder da narrativa é o que o leva adiante em seu relato. Convidamos vocês a acompanhá-lo e a ouvir atentamente a história que ele tem para lhes contar. Que a imaginação seja companheira de todos nós nesta experiência, assim como foi para Bentinho.